Ninguém Me Perguntou #4
Edição especial sobre neurodivergência, descobertas tardias, acolhimento e pequenas soluções que fazem uma diferença gigante no dia a dia.
📣 Coisas que ninguém perguntou (mas eu vou contar mesmo assim)
Oiê!
Na semana passada, recebi uma cartinha de alguém que assina a newsletter que me atravessou e me fez pensar em como a gente fala pouco (ou quase nada) sobre diagnóstico de neurodivergências na vida adulta. Resolvi compartilhar por aqui:
“Fiz a investigação neuropsicológica e saiu o resultado semana passada. Por mais que um dos resultados estava na cara eu ainda não sei reagir com isso tudo. Se o TDAH fosse um jogo eu teria zerado com 90%, bati na porta do espectro autista e saiu um QI 114 verbal, 130 de execução e 125 total. Deu altas habilidades e super dotação. Eu fiquei tão chocado com tudo que nem fiz piada. Nem preciso assinar pq vc sabe quem sou. Escrevi isso ouvindo Million Years Ago da Adele e quase chorei. Pqp.”
Pois é. A newsletter de hoje é sobre isso. Sobre se descobrir, se entender e, mais do que tudo, se acolher.
Se você se identificar com essa leitura, responde esse e-mail ou manda uma cartinha anônima no nosso formulário de cartas. Tô aqui pra conversar.
No rolê de hoje:
Crônica versão textão sobre minha jornada até aqui
Produtos que me ajudam no dia a dia - versão neurodivergente
Dicas de coisas pra fazer se você acha que tá no mesmo barco
☕ Coisas que pensei enquanto fazia um chá
Autismo aos 31: tudo bem se você só entender depois
Tudo começou quando eu descobri o que significava "introversão". Eu achava, assim como muita gente ainda acha, que essa palavra era sinônimo de timidez- e eu nunca me considerei tímida. No momento em que entendi que introversão é um traço de personalidade em que a pessoa tende a direcionar sua energia pro mundo interior, preferindo atividades solitárias e reflexivas em vez de interações sociais intensas, tudo começou a fazer sentido.
Passei boa parte da adolescência fechada no meu quarto, ouvindo música, escrevendo em diários, tocando violão - tudo sozinha. Era feliz assim. Minha mãe, que sempre respeitou meu espaço, nunca viu problema nisso.
Na pandemia, tirando o detalhe do vírus mortal matando milhões de pessoas, eu vivi uma fase bem confortável. Ninguém podia me chamar pra sair, eu não precisava ir a eventos, fazer social... tava no céu. Quando consegui um trabalho remoto então? Perfeito. Vida ganha.
Foi nessa época que meu pai começou a ver The Big Bang Theory (ele assiste até hoje, aliás), e o apelido “Sheldon” passou a rolar solto. O curioso é que esse apelido já tinha aparecido antes: em trabalhos antigos, entre amigos próximos... e quando eu assisti à série, entendi o porquê.
Sheldon Cooper tem rotinas rígidas, uma certa dificuldade com figuras de linguagem e... um talento que eu também tenho desde pequena: o de ter “meu lugar” em todo lugar. No sofá, na mesa da cozinha, no ônibus, na sala dos professores. Sentar num lugar “errado” é esquisito, sabe? Difícil explicar. Achei que fosse só isso que fazia as pessoas me compararem a ele. Mas, adivinha? Era só a pontinha do iceberg.
Durante muito tempo, se discutiu se o Sheldon era autista. Muita gente falava em Síndrome de Asperger, um termo que já caiu em desuso tanto por quem foi Asperger quanto por uma compreensão melhor do que aquilo representa - autismo com baixo nível de suporte. A questão é: será que o que eu tenho é isso?
E aí... eu fiz o que faço de melhor: mergulhei numa pesquisa. Criei uma planilha (óbvio), categorizei sintomas, organizei em hierarquias, cor, tópico. Entendi o que poderia ser autismo, e depois fui vendo com o que eu me identificava. Quando percebi que minha lista estava longa, pensei: é, talvez seja hora de buscar um diagnóstico.
E ele veio, no ano passado, aos 31 anos de vida: Autismo nível 1 de suporte, com Altas Habilidades/Superdotação. “Mas sua mãe era psicóloga! Como ninguém percebeu isso antes?”
A resposta é simples: eu não pareço autista, se você tiver como referência aquele estereótipo batido e limitado que a sociedade costuma alimentar.
O autismo em mulheres costuma passar despercebido. Muitos dos sintomas são vistos como “normais” ou até desejáveis. Gostar demais de bandas? Quem nunca. Ser quietinha na infância? “Ué, que menina comportada!”, por aí vai. Além disso, no meu caso, muita coisa acontece só dentro da minha cabeça. Eu não demonstrava tanto, então... como saber?
Eu gosto de ficar no escuro (achei que fosse astigmatismo, mas não: era autismo). Tenho muita sensibilidade a sons irritantes, tipo batucar ou clicar caneta sem parar (quem GOSTA disso, gente?). Sempre fui muito pontual, às vezes chegando no evento antes do próprio anfitrião. Achei que fosse organização, mas é rigidez cognitiva. Em grupos grandes, fico quieta, mesmo sendo uma matraca em grupos menores. Achei que fosse introversão, mas é autismo. O mesmo vale pra minha paixão por rotinas e meu desespero interno quando planos mudam de última hora. E antes de falar com qualquer pessoa que não conheço (e ao telefoneaté com conhecidos), eu ensaio o diálogo umas três vezes. Achei que fosse neura, mas era... autismo.
Ter o diagnóstico mudou tudo. Saber que posso usar abafadores de ruído ou fone com cancelamento de som pra melhorar minha experiência. Saber que eu não preciso ir a um evento se estou sem energia. Saber que tá tudo bem preferir luz baixa. Saber que minha dificuldade com mudanças não é frescura. Eu não sou chata - eu sou só autista.
Se você me conhece, nada mudou. Eu sigo entendendo sarcasmo, fazendo trocadilhos ruins e esquecendo de responder mensagens. A diferença é que agora eu me entendo melhor. Tenho ferramentas pra lidar com o que sempre me incomodou e que ninguém via.
Então é isso. Me conhecer melhor foi o maior presente que já me dei. E se você também tem sentido que tem alguma peça fora do lugar aí dentro, vale investigar. Pode dar medo, pode confundir, mas também pode ser o primeiro passo pra entender que não tem nada de errado com você - você só funciona diferente. E tá tudo bem.
Ah, e não precisa me tratar diferente depois de ler isso, tá? Eu já era autista quando você me conheceu, a gente só não sabia disso.
A não ser que seja pra me deixar sentar no meu lugar favorito. Aí eu agradeço.
🎧 Confia que é bom!
Achadinhos que me ajudam como autista (e podem ajudar mais gente também):
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🧠 Suspeitei desde o princípio
Dicas pra quem desconfia que é neurodivergente e não sabe nem por onde começar
Se você anda se perguntando se talvez seja neurodivergente – e não sabe se tá viajando ou se finalmente entendeu um negócio sobre você que ninguém nunca percebeu – respira. Tá tudo bem. Eu estive exatamente aí.
Aqui vão alguns caminhos possíveis pra começar a investigar isso com carinho e sem pânico:
📝 Anote o que você sente ou percebe
Pode ser um diário, uma planilha ou um áudio no celular. O que importa é ter consciência o que você sente, como reage a certas situações, o que te sobrecarrega, o que te acalma, o que sempre foi “diferente” e você nunca entendeu muito bem. Isso pode te ajudar a se entender melhor e a ter um ponto de partida se decidir buscar um diagnóstico.
🔍 Avaliação profissional (se for possível)
Se tiver acesso, vale procurar um psiquiatra que entenda de neurodivergência em adultos. Se não tiver, o SUS também oferece esse tipo de atendimento – é um processo mais demorado, mas existe! Dá pra começar por um postinho ou centro de saúde da sua cidade.
👯♀️ Converse com outras pessoas ND
Essa troca é ouro. Às vezes, ouvir alguém dizendo “isso acontece comigo também!” muda tudo. Trocar experiências pode te ajudar a identificar padrões que antes você só achava “esquisitices suas”.
🫶 Se acolha no caminho
Você não precisa de laudo pra começar a se cuidar. Se um abafador de ruído te ajuda, usa. Se você sente mais conforto em rotinas rígidas, tá tudo certo. Se você precisa de tempo sozinho depois de interações sociais, se dê esse tempo. Seu corpo e sua mente estão falando com você. Ouve com carinho.
💌 Manda sua cartinha!
Nesta edição, a cartinha apareceu logo no começo, mas a seção tá aqui firme e forte!
Todas as histórias são bem-vindas: dúvida, desabafo, fofoca, indireta pro crush, pedido de conselho, ou só um “oi”.
Quer escrever? É por aqui: formulário para cartinhas.
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Te vejo segunda que vem!
Tchau, beijo!
Raquel
Que incrível ler sobre o seu processo, Rachel ❤️ você me inspira muito, sempre!